Atingidos por crise climática devem ter condição de refugiados, dizem pesquisadoras da UFSC
O conceito de refugiados climáticos tem repercutido no debate público desde o episódio histórico das inundações que atingiram o Rio Grande do Sul entre abril e maio, deixando milhares de pessoas desabrigadas. No dia 21 de maio, por exemplo, havia 72 mil pessoas fora de casa e 839 abrigos cadastrados no Observatório de Desenvolvimento Social.
“Um refugiado climático pode ser tanto aqueles que saem dos seus locais de residência antes de acontecer um evento extremo, como forma de precaução, como aqueles que se veem obrigados a sair por conta das consequências de eventos extremos, por perderem sua moradia”, explica a pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Iris Engelmann, doutoranda em Direito e Integrante do Observatório de Justiça Ecológica (OJE).
O assunto, no entanto, está longe de um consenso entre os especialistas no mundo. Isso porque, para ser oficialmente um refugiado, o indivíduo precisa preencher os requisitos do Estatuto do Refúgio, no Brasil regido pela Lei nº 9.474/1997. “Esses requisitos não abrangem as causas ambientais”, explica Iris.
A legislação internacional também sofre da mesma carência. A pesquisadora Thaís Pertille defendeu, em 2023, uma tese sobre o direito humano ao equilíbrio climático. Ela explica que as normas exigem o critério de perseguição para que uma pessoa se enquadre na possibilidade de refúgio. “Defensores e pesquisadores de Direitos Humanos defendem uma ampliação para que pessoas que sofram grandes violações de direitos humanos também possam ter as prerrogativas do instituto do refúgio reconhecidas. Dessa forma, aqueles que migram por questões ambientais e climáticas seriam albergados”, pontua.
O trabalho de Thaís, que também integra o OJE, foi orientado pela professora Letícia Albuquerque e defende o Direito Humano ao Equilíbrio Climático. Hoje, segundo ela, com os mecanismos em curso, as pessoas atingidas e impactadas pelas cheias acabam por depender de medidas de proteção adotadas pelo Estado.
“Essas pessoas hoje legalmente não estão albergadas pelo instituto do refúgio e dependem de ações do próprio governo e comunidade local para receber algum tipo de apoio. Se fossem reconhecidas enquanto refugiadas conforme o instituto jurídico, seria possível ampliação da responsabilidade internacional”, diz.
Iris explica que a comunidade científica está engajada na proposta de inserir migrantes por força dos extremos climáticos na categoria de refugiados para garantir um maior rol de direitos a eles, além da uma maior facilidade de efetivação desses direitos. “Esse contexto fortalece a necessidade de criação de instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que concedam proteção e direitos eficazes aos que migram por razões ambientais e climáticas e estão em condição de vulnerabilidade”, pontua.
Ela cita como proteções aos quais esses cidadãos reconhecidos como refugiados teriam acesso, caso incluídos na lei, o direito à não discriminação (art. 3º), à religião (art.4º), à propriedade móvel e imóvel (art. 13), o direito de estar em juízo (art. 16), a empregos remunerados (art. 17 a 19), ao bem-estar (art. 20 a 24), à liberdade de movimento (art. 26), à documentação de identidade e viagem (art. 27 e 28) e à proibição de expulsão ou rechaço (art. 33).
A pesquisadora é uma das autoras de Refugiados ambientais e o colapso climático sob a perspectiva da colonialidade da natureza, publicado no livro Fundamentos constitucionais das políticas públicas, em coautoria com a professora Maria de Fatima Wolkmer.
Desafios
Para Thaís, há uma série de desafios colocados ao impasse quanto às garantias de direitos aos cidadãos forçados a sair de suas localidades em razão dos extremos climáticos. Ela cita, por exemplo, a complexidade das causas que promovem movimentos de migração. “As migrações induzidas pelo clima muitas vezes resultam de uma combinação de fatores ambientais, econômicos, sociais e políticos, o que dificulta a identificação clara da causa principal da migração. Isso torna desafiador determinar se uma pessoa está fugindo especificamente de mudanças climáticas ou de outros fatores”, pontua.
Além disso, a soberania nacional também pode ser considerada um desafio ao estatuto dos refugiados climáticos. “O reconhecimento de refugiados climáticos pode desafiar essa soberania, especialmente se os Estados forem confrontados com um grande número de pessoas deslocadas devido a mudanças ambientais”, diz. Outros aspectos que chamam a atenção da pesquisadora são a dificuldade de provar que o deslocamento ocorreu por causa do clima, além da falta de uma responsabilidade compartilhada entre os países afetados.
Nesse sentido, ganha força também a discussão sobre desigualdade social. Iris frisa que são as populações mais pobres e vulnerabilizadas que ficam normalmente mais expostas a eventos climáticos com baixo acesso à infraestrutura de redução de riscos. Ela lembra que a condição é elevada considerando-se uma capacidade limitada de resposta por conta da falta de bens, seguros e meios de subsistência. A falta de apoio estatal e a proteção jurídica limitada agravariam ainda mais essas condições.
Responsabilidade compartilhada
“Entendo que a importância do reconhecimento desses migrantes por causa climática como refugiados climáticos reside justamente na tomada de responsabilidade internacional por esses eventos, porque, afinal, a mudança climática não tem causas somente locais, mas transfronteiriças. Da mesma forma, lidar com as consequências disso deve ser uma responsabilidade compartilhada”, reflete Thaís.
Iris segue na mesma direção. Segundo ela, questões de urbanização, comumente associadas a fenômenos como as cheias, são universais, mas tendem a atingir o seu pior nível em regiões mais pobres e com menos atenção política. Ela lembra que a ocorrência de desastres climáticos agrava esse fenômeno, piorando a ocorrência da pobreza, da fome e da insegurança alimentar.
“É uma situação degradante, que lhes priva do direito básico a ter um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, alimentação, água, e até mesmo vestuário, habitação e cuidados médicos, além de ameaçar a própria sobrevivência das pessoas, violando seu direito à vida e à integridade física”, pondera.
Na sua pesquisa, ela defende e demonstra, por meio de base científica, que as mudanças climáticas são consequências diretas da falta de cuidado do ser humano com o meio ambiente. “O equilíbrio ecológico possui estreita relação com a garantia da dignidade humana, principalmente em situações de pobreza ou vulnerabilidade social. Além disso, o direito à vida se relaciona profundamente com como uma comunidade se organiza e se relaciona com os ecossistemas e com a Natureza, de modo que a defesa do direito humano à vida implica também a defesa da natureza e do seu ambiente vital”.
Memória
Já Thaís insere nas suas pesquisas reflexões sobre a importância de integrar discussões sobre mudanças climáticas à memória, a exemplo do que se faz com relação ao período da ditadura militar no Brasil: para que nunca se esqueça. “Ao estudar como o Brasil lidou com desastres naturais no passado, é possível identificar tanto práticas bem-sucedidas quanto falhas na gestão de crises. Esse aprendizado pode informar políticas e estratégias futuras para melhorar a resiliência e a capacidade de resposta a eventos climáticos extremos”, acredita.
Ela defende que integrar a memória histórica das mudanças climáticas permite uma compreensão mais profunda dos impactos sociais, econômicos e culturais desses eventos sobre as comunidades brasileiras. “Isso ajuda na formulação de políticas mais inclusivas e sensíveis às necessidades das populações afetadas de forma a enfrentar problemas como o racismo ambiental”, completa.
Esse movimento, segundo ela, permite que a memória modificada faça com que o ser humano perceba como age e impacta o mundo, como agente do ambiente capaz de gerar consequências. “Essa percepção é essencial para concretização de um direito humano ao equilíbrio climático, contudo, envolve revisitar momentos de dor, olhar para a atuação humana até aqui e de certa forma, viver um luto por suas perdas e um ressignificar para melhor interpretar/agir/proteger o que está à volta, essencialmente, o próprio valor humano da dignidade”.
Amanda Miranda |amanda.souza.miranda@ufsc.br
Agecom | UFSC